ORPHÉE de/by Phillip Glass
2022
O mito de Orfeu chegou-nos em diferentes versões, com relevantes diferenças consoante as fontes, mas aquela que mais vezes foi transposta para música, e que respeita apenas à relação de Orfeu com Eurídice, pode ser assim resumida: o celebrado poeta e cantor estava ainda inebriado com a bem-aventurança do seu casamento com Eurídice quando esta sofre a mordedura fatal de uma serpente. Inconsolável com a morte da esposa, Orfeu ousa descer ao Inferno a fim de a resgatar, tendo como únicas «armas» o seu canto e a sua lira. Usa-as com tal arte e coloca na súplica tanta emoção que as potências infernais lhe concedem um raro privilégio: Eurídice será autorizada a regressar ao mundo dos vivos, na condição de Orfeu não olhar a esposa até deixar os domínios subterrâneos. Na marcha para a superfície, Eurídice, que não está a par dos termos da sua libertação, não compreende a atitude distante do esposo e tanto suplica pela sua atenção que Orfeu acaba por se voltar, o que tem o imediato efeito de remeter Eurídice de volta para as profundezas, desta vez definitivamente. Os diversos libretos de óperas órficas divergem a partir daqui, algumas optando por finais lúgubres, outras desembocando no final feliz exigido pelas convenções da época.
O mito de Orfeu e Eurídice é talvez o tema mais recorrente da história da ópera, tendo estado na génese do género, no dealbar do século XVII e tendo continuado a inspirar sucessivas gerações de compositores até aos nossos dias. Não é difícil perceber por que, entre tantos episódios da mitologia greco-romana, foi este que mais recorrentemente seduziu os compositores: a narrativa não só segue a estrutura arquetípica «boy finds girl, boy loses girl, boy gets girl again» (aqui acrescido da etapa «boy loses girl again»), como é uma proclamação do formidável poder da música, que até é capaz de amansar os monstros façanhudos e as divindades implacáveis que habitam o Mundo Ínfero. Já o anúncio da estreia de uma ópera de Philip Glass sobre este tema central da tradição operática poderá ter parecido surpreendente ao meio musical do início dos anos 1990, uma vez que as óperas que Glass compusera até então e que lhe tinham granjeado imensa notoriedade – Einstein on the beach (1976), Satyagraha (1980) e Akhnaten (1984) – dir-se-iam meticulosamente concebidas para desafiar as convenções do género.
A verdade é que o Orphée de Glass – composto em 1991 e estreado em 1993 – é muito pouco convencional e ostenta a inconfundível marca do compositor. No que ao libreto respeita, Glass não olhou para trás: saltou sobre as fontes clássicas e sobre 400 anos de tradição operática e tomou como ponto de partida o filme Orphée (1950), de Jean Cocteau, que, com generosas doses de liberdade e irreverência, transpôs o cenário dos prados e bosques da Trácia para uma Paris de meados do século XX e fez de Orfeu (interpretado por Jean Marais) um poeta a debater-se com uma crise criativa. A escolha de Glass terá brotado do fascínio que experimentara na adolescência ao descobrir o cinema de Cocteau e que o levou a adaptar ao formato ópera de câmara duas outras obras de Cocteau, La belle et la bête (1994) e Les enfants terribles (1996).
No caso de Orphée, a realidade de 1991 acabaria por emprestar uma nova perspectiva, assaz dolorosa, ao enredo mitológico. Em 1981, durante numa viagem de avião transatlântica, Glass cruzara-se com Candy Jernigan, uma designer gráfica, e não tardou que estivessem a viver juntos e que Jernigan assumisse a concepção das capas dos discos de Glass – mas em 1991, enquanto Glass trabalhava em Orphée, Jernigan descobriu que tinha um cancro no fígado, numa fase avançada de desenvolvimento. É tentador estabelecer um paralelismo entre a dor de Orfeu face à abrupta perda de Eurídice e a situação de Glass face à abrupta perda de Jernigan, que faleceu escassas semanas após o diagnóstico – e a verdade é alguns trechos de Orphée revelam uma intensidade emocional e um lirismo pouco usuais num compositor conhecido pela frieza e mecanicismo da sua música. – José Carlos Fernandes
(O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)
ESTREIA Nacional 27 & 30 Janeiro 2022, Centro Cultural de Belém (Lisboa).
Orphée
de Philip Glass
Uma ópera de câmara em dois atos
Baseada no filme de Jean Cocteau
Adaptação de Philip Glass
Edição de Robert Brustein
© Dunvagen Music Publishers Inc. Used by Permission.
Direção Felipe Hirsch
Maestro Pedro Neves
Com a Orquestra Metropolitana de Lisboa
Direção de arte Daniela Thomas e Felipe Tassara
Iluminação Beto Bruel
Princesa Carla Caramujo
Eurídice Susana Gaspar
Heurtebize Luís Gomes
Cégeste Marco Alves dos Santos
Orphée: André Baleiro
Juiz/Comissário Nuno Dias
Poeta Luís Rodrigues
Aglaonice Cátia Moreso
Repórter/Glazier João Pedro Cabral
Bailarinos Alice Bachy, catarina Rina Marques, Daniela Cruz, Filipe Pereira, Gerson Sanca, Gili Goverman, Hugo Marmelada, João Oliveira, Laure Fleitz, Natacha Campos, Tiago Coelho, Sérgio Matias
Figurino e visagismo Nuno Esteves Blue
Direção de movimento Sofia Dias e Vitor Roriz
Design de vídeo Henrique Martins
Assistência de direção Crista Alfaiate
Produção Ricardo Frayha
Coprodução Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Centro Cultural de Belém
foto©CCB/Rita Carmo